Não faltaram tentativas para mudar a solene afirmação com que João dá início a seu Evangelho: “No princípio era a Palavra”. Na antiguidade, os gnósticos propunham a variante: “No princípio era o Silêncio” e Goethe faz seu Fausto dizer: “No princípio era a ação”. É interessante averiguar como o escritor chega a esta conclusão: “Não posso, diz Fausto, atribuir à ‘palavra’ um valor tão alto; talvez deva entender ‘o sentido’, mas pode o sentido ser aquilo que tudo opera e cria? Dever-se-á, então, dizer: ‘No princípio era a força’? Também não, pois que uma iluminação, sobrevinda de improviso, sugeriu a resposta: ‘No princípio era a ação’”. São, todavia, realmente necessárias e justificáveis tais tentativas de correção? O Verbo, o Logos de João contém todos os significados assinalados por Goethe em outros termos. E isso, como podemos constatar no restante do prólogo, é luz, é vida e é força criadora. É “palavra produtiva”: “ele mandou e foram criados” (Sl 148,5). Ao falar, Deus
cria. A diferença entre uma proposição especulativa ou teórica (por exemplo, “o homem é um animal racional”) e uma proposição operativa ou prática (por exemplo, Fiat lux, “faça-se a luz”) está em que a primeira considera o elemento como já existente, ao passo que a segunda o faz existir, chama-o ao ser.
Assim sendo, o fato que no princípio era o Silêncio é verdadeiro, desde que se entenda por silêncio a ausência de toda voz e palavra de criatura; é falso, se por silêncio se entender também a ausência de palavra em Deus. E é precisamente deste silêncio das coisas, e não de um silêncio primordial, que fala o texto da Sabedoria aplicado pela liturgia ao Natal de Cristo: “Quando um tranquilo silêncio envolvia todas as coisas e a noite chegava ao meio do seu curso, a tua Palavra todo-poderosa, vinda do céu, do seu trono real, precipitou-se...” (Sb 18,14-15).
O pensamento cristão lutou para conferir à expressão “no princípio” o verdadeiro significado entendido por João. Antes de tudo, precisou libertar-se da ideia de que o Verbo foi proferido pelo Pai somente no momento de criar o mundo, quando pronunciou o fatídico Fiat lux, “faça-se a luz”. Uma solução provisória, neste sentido, consistiria em distinguir o Verbo enquanto proferido (Logos proforikos), que começa a existir no momento da criação, do Verbo enquanto inato em Deus (Logos endiathetos) que existe desde a eternidade. Entretanto, a solução definitiva só se obteve no Concílio de Niceia, em que os padres rejeitaram a ideia de que “houve um tempo em que o Verbo não existia”. O Filho de Deus é eterno também como “Verbo proferido”, pois desde sempre o Pai “pronuncia” seu Verbo e mesmo Ele próprio, enquanto Pai, não existiria ab aeterno, se ab aeterno não tivesse um Filho que é o Verbo.
O “princípio” em que João coloca a Palavra é, portanto, um princípio absoluto, que está fora do tempo. Se houver alguma alusão ao texto do Gênesis – “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gn 1,1) –, deve ser entendida no sentido de que, no momento em que todas as coisas começam a existir, o Verbo “era” já existia.
CANTALAMESSA, Raniero. O Mistério da Palavra de Deus. São Paulo: Canção Nova, 2014.

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